Grande Sertão: Savana
por João Correia Filho, De Maputo
Quando Guimarães Rosa começou a influenciar a sua obra?
Depois que escrevi meu primeiro livro de contos, vozes anoitecidas (1987). Rosa tinha
feito uma espécie de recriação do português, o que me tocou muito, porque havia
na época uma necessidade quase existencial dos escritores moçambicanos em se
verem livres de um português que já não lhes servia, que era uma espécie de vestuário
que tinha sido feito à medida de outra cultura, já um pouco desajustada, uma
espécie de um termo fabricado com tecido e padrões que não tinham absolutamente
a ver com a realidade moçambicana. E nós sabíamos que o Brasil havia feito isso
há mais de dois séculos, havia vencido essa briga para tornar sua língua mais
plástica, mais adequada, mais próxima da oralidade. Aliás, é justamente isso
que Guimarães faz, ele abre a porta às vozes, aquilo que está latente na
oralidade de seu país.
Como foi o primeiro contanto com a obra dele?
O escritor angolano Luandino Vieira havia dito numa
entrevista que tinha sido marcado pela obra de Rosa. Era um autor que eu não
conhecia, pois estávamos em guerra e tínhamos pouca ligação com o Brasil. Só
fui conhecer sua obra um ano depois, em 1988, quando um amigo brasileiro trouxe
fotocópias de uns textos do Rosa, entre as quais estava A terceira margem do rio(do livro Primeiras Estórias ,de 1962). Foi um abalo sísmico. A uma certa
altura eu não o leio, sou atirado para fora da página, começo a escutar vozes e
tenho de regressar à página como se de fato aquilo que eu encontrei estivesse
fora da página, que é este o local da oralidade. Rosa foi capaz de deixar que a
lógica da escrita fosse levada a um outro tipo de lógica. Esse é o grande
achado. Não saí igual depois de ler aquele texto e, quando escrevi meu segundo
livro, Cada homem é uma raça (1990),
já estava muito marcado por esse contato, por esse diálogo.
A oralidade de sua obra tem a ver com a dele?
Aqui em Moçambique não é possível fugir da oralidade.
Posso dar vários exemplos em que as pessoas podem discutir a coisa mais sagrada
e mais séria do mundo, economia, por exemplo, mas o fazem contando isso com
histórias, com aquilo que são os conceitos da oralidade, e não estão ainda
subjugados pela gramática funcional. É nesse sentido que costumo dizer que
poderíamos ser todos ótimos escritores, porque manipulamos bem a forma de
contar as histórias. Além disso, em Moçambique há um convívio entre várias
línguas maternas do pais, o que implica que cada um de nós seja um tradutor em
diferentes dimensões. Há línguas aqui que não têm palavras para “natureza”,
“meio ambiente”, às vezes “Deus”.
À primeira vista, parece complicado...
...Mas é muito enriquecedor. E é aí que se busca uma
linguagem que é própria, criativa e vai além da questão literária, pois
valoriza outras lógicas, que estão para além da lógica da escrita. Esse é o
modo como fui abraçado e abracei a obra de Guimarães Rosa, por uma questão mais
que literária. Tem a ver com aquele jogo que ele faz de apostar numa linguagem
que seja construtora de identidade.
Todos os moçambicanos poderiam ser escritores,
mas estamos tratando de um país que tem alto índice de analfabetismo.
Não entendo que a luta contra o analfabetismo tenha de
ser feita esmagando a oralidade. Não as vejo como coisas contraditórias. A
maneira como são construídos os sistemas de saber modernos, ao se eliminar o
analfabetismo também se elimina a oralidade, classificando-a. e a oralidade não
é a ausência do saber da escrita, a oralidade é um outro saber, uma outra
maneira de olhar o mundo.
Em Terra
sonâmbula, após a morte do pai, o filho leva comida todos os dias para o
falecido, como oferenda, e a comida desaparece. Há passagem semelhante em A terceira margem do rio.
É muito fácil perceber esses
cruzamentos, pois essa prática de levar comida pra quem já não está presente é
comum na África e ao redor do mundo. Aqui os mortos estão sempre presente, os
mortos não morrem. Aqui se leva comida para o falecido, não é algo que invento.
Simplesmente coloco num outro contexto.
Você sente algum preconceito por ser branco num
país africano?
Há momentos em que tenho de pagar
uma espécie de imposto, uma taxa de raça, mas acho que isso é compreensível num
país que teve essa situação de racismo agressiva. Não fico negativamente
afetado, pois em geral o que ouço nas ruas é as pessoas dizerem: “Você é
nosso”. Além disso, em quase todas as línguas daqui não há uma palavra para
dizer branco ou preto, como cor de pele, mas há a palavra “muzungo” que quer
dizer que a pessoa é uma estranha, uma estrangeira. O recém-chegado será
“muzungo”, mesmo se for negro, contanto que não fizer parte do lugar. Brancos e
negros são caracterizados da mesma maneira. Se você demonstrar que fala a língua
deles e está por dentro do que acontece ali, já não é mais “muzungo”. A cor da
pele não é tão determinante assim para aquilo que se determina como sendo o outro.
Quando a oralidade entra definitivamente na sua
obra?
A diferença está na maneira como
sai, não na maneira como entra. Todos nós tivemos vozes, que podem ser do pai,
do avô, dos tios, e que nos encarnam. O processo de encantamento é que é a
raiz, quando nos deixamos encantar pelas primeiras vezes. No meu caso, tive uma
sorte enorme, pois minha mãe é uma grande contadora de histórias. Está viva,
tem 90 anos, e até hoje conta historias com uma capacidade de criar brilhos e
cores muito acentuada. Meus pais eram imigrantes portugueses, vieram só os
dois, sem família, e ela se transmutava na família inteira: era avó, bisavó,
tia, tio, sempre por via das historias.
Há alguma identificação de Moçambique com o
sertão roseano?
Sim, posso dizer que sim. Mas o
curioso é que a própria palavra “sertão” também foi introduzida aqui pelos
portugueses. Os livros que descrevem as viagens dos exploradores portugueses,
no século 19, falam do sertão, embora a palavra tenha morrido por aqui. Eles
queriam designar algo que realmente tinha de fato paralelo em Moçambique, algo
paisagístico, geográfico, mas a palavra não viveu. Aqui, o que é equivalente é
a savana, esta zona de savana que é muito variada, mais densa menos densa, mas
tem um sentido de não lugar – no sentido do infinito, que não tem começo e não
tem fim, como disse o próprio Rosa. E tem uma sonoridade muito interessante,
algo que eu já tratei em algum lugar, porque sertão tem o verbo “ser”, e o
“tão” que é uma medida de infinito, algo que é indizível.
A invenção de palavras é uma forma de criação
literária?
Sempre que fiz isso não foi
porque tinha a intenção de fazer bonito. Nem estava em busca de algo
linguístico, simplesmente. Mas porque há coisas que só podem ser ditas assim. A
intenção é revelar, acho que o verbo é esse mesmo, no sentido de encontrar uma
linguagem outra, que convide o leitor a esta cumplicidade na construção de uma
outra linguagem. Não é intenção estética, não é uma técnica, mas é algo que já
havia em mim, como uma urgência. Como é que eu vou dar nomes às coisas e
livrar-me dessa carga da língua? Como vou retirar Portugal desse meu português?
Venho da poesia, fui antes de tudo um poeta e, portanto, tenho na palavra a
base de tudo. Sou artífice da palavra. Para mim, a palavra é tão valida quanto
a historia. Busco sempre restituir algo divino à palavra e também usá-la como
ferramenta. Escrevo porque tenho o prazer de profanar algo que é cotidiano. Às
vezes a palavra até está lá, é preciso destapá-la, tirar o pó, uma poeira que a
estava cobrindo e pronto – ela é revelada, redescoberta.
Muitas vezes, como fez Rosa, basta inverter a
palavra na frase, não?
Sim, muitas vezes na reconstrução
de uma frase feita; outras, no provérbio. Rosa trabalhava naquilo que podemos
chamar de improvérbios. Ele os torna
improváveis, faz com que constituam um sentido de imprevisibilidade. Isto é uma
coisa que faço com os meus filhos, ensiná-los para que eles sejam donos desse
prazer, de construir sua própria língua, de surpreender-se. Obviamente que nós
usamos essa língua social, que está ali feita, que é patrimônio, mas se você
não tem a capacidade de torna-la um brinquedo, de usá-la como uma brincadeira,
então perde uma oportunidade de ser feliz dia a dia.
E seus filhos conseguem?
Acho que sim, mas isso depende
muito da capacidade de ser feliz num território de noutro. Eu, por exemplo, fu
uma criança muito feliz, mas com grandes infelicidade, algumas inventadas,
pensava que era mal amado, desprezado, que meus pais não me davam mais atenção,
aquelas coisas que os meninos inventam para si. Pensava que era muito feio, e
não tinha graça... Bom... eu vivia isso tudo. Era uma criança felicíssima, mas
brigava contra essas infelicidades inventadas, o que sempre me levava a
procurar outros sentidos, ir pro lado avesso.
Você fala em infelicidades inventadas, mas
viveu períodos de guerra. Esse é o motivo de esse tema ser tão presente na sua
obra?
Vou te contar um episodio
ocorrido quando eu tinha 17 anos e que pode ilustrar essa sua pergunta. Fui
militante da Frelimo, na altura na clandestinidade, e havia uma coisa curiosa:
para oferecer-se à luta, havia uma comissão, perante a qual você tinha de fazer
algo que chamávamos de “narração do sofrimento”. Muito bonito o termo, mas você
tinha que provar que merecia confiança e sua candidatura à causa revolucionária
era legitima. Essa legitimação era feita pelo sofrimento. Comigo estavam pessoas
com 30, 40 anos, pessoas pobres, de outra condição social, todos negros que
viviam sob um regime de ditadura, um regime racista. Enquanto esperava minha
vez para fazer a narrativa, eu me perguntava. O que sofri? Quais foram meus
reais sofrimentos? Tinha de pensar rápido quais seriam esses sofrimentos que
não tive nunca, para justificar-me. Pensei que não iam me aceitar e , no final,
quando me chamaram, disse mais ou menos assim: “Eu sofri por causa de ver
sofrimento dos outros. Não passei fome, nunca tive carência, nunca fui
discriminado racialmente. Sou parte de uma elite privilegiada, mas todo o resto
que inventei como ilusão de sofrimento foi tão real para mim como o sofrimento
desses que passaram aqui”. Ao final, alguém me perguntou: “Você é poeta, não
é?” Na altura, eu tinha apenas publicado uns textos que ninguém conhecia, em
jornal. “Sou”. E eles me disseram: “Precisamos muito de poesia”. E fui aceito.
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