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02/01/2013

Entrevista com Mia Couto

Mia Couto é um escritor moçambicano que faz literatura em português. As suas obras são caracterizadas por forte identidade cultural de seu país e é nesse aspecto que se assemelha com a literatura brasileira. Nesta entrevista, ele fala sobre a influencia de Guimarães Rosa em seu texto.



Grande Sertão: Savana

                                                                                                por João Correia Filho, De Maputo

Quando Guimarães Rosa começou a influenciar a sua obra?

Depois que escrevi meu primeiro livro de contos, vozes anoitecidas (1987). Rosa tinha feito uma espécie de recriação do português, o que me tocou muito, porque havia na época uma necessidade quase existencial dos escritores moçambicanos em se verem livres de um português que já não lhes servia, que era uma espécie de vestuário que tinha sido feito à medida de outra cultura, já um pouco desajustada, uma espécie de um termo fabricado com tecido e padrões que não tinham absolutamente a ver com a realidade moçambicana. E nós sabíamos que o Brasil havia feito isso há mais de dois séculos, havia vencido essa briga para tornar sua língua mais plástica, mais adequada, mais próxima da oralidade. Aliás, é justamente isso que Guimarães faz, ele abre a porta às vozes, aquilo que está latente na oralidade de seu país.

Como foi o primeiro contanto com a obra dele?

O escritor angolano Luandino Vieira havia dito numa entrevista que tinha sido marcado pela obra de Rosa. Era um autor que eu não conhecia, pois estávamos em guerra e tínhamos pouca ligação com o Brasil. Só fui conhecer sua obra um ano depois, em 1988, quando um amigo brasileiro trouxe fotocópias de uns textos do Rosa, entre as quais estava A terceira margem do rio(do livro Primeiras Estórias ,de 1962). Foi um abalo sísmico. A uma certa altura eu não o leio, sou atirado para fora da página, começo a escutar vozes e tenho de regressar à página como se de fato aquilo que eu encontrei estivesse fora da página, que é este o local da oralidade. Rosa foi capaz de deixar que a lógica da escrita fosse levada a um outro tipo de lógica. Esse é o grande achado. Não saí igual depois de ler aquele texto e, quando escrevi meu segundo livro, Cada homem é uma raça (1990), já estava muito marcado por esse contato, por esse diálogo.

A oralidade de sua obra tem a ver com a dele?

Aqui em Moçambique não é possível fugir da oralidade. Posso dar vários exemplos em que as pessoas podem discutir a coisa mais sagrada e mais séria do mundo, economia, por exemplo, mas o fazem contando isso com histórias, com aquilo que são os conceitos da oralidade, e não estão ainda subjugados pela gramática funcional. É nesse sentido que costumo dizer que poderíamos ser todos ótimos escritores, porque manipulamos bem a forma de contar as histórias. Além disso, em Moçambique há um convívio entre várias línguas maternas do pais, o que implica que cada um de nós seja um tradutor em diferentes dimensões. Há línguas aqui que não têm palavras para “natureza”, “meio ambiente”, às vezes “Deus”.

À primeira vista, parece complicado...

...Mas é muito enriquecedor. E é aí que se busca uma linguagem que é própria, criativa e vai além da questão literária, pois valoriza outras lógicas, que estão para além da lógica da escrita. Esse é o modo como fui abraçado e abracei a obra de Guimarães Rosa, por uma questão mais que literária. Tem a ver com aquele jogo que ele faz de apostar numa linguagem que seja construtora de identidade.

Todos os moçambicanos poderiam ser escritores, mas estamos tratando de um país que tem alto índice de analfabetismo.

Não entendo que a luta contra o analfabetismo tenha de ser feita esmagando a oralidade. Não as vejo como coisas contraditórias. A maneira como são construídos os sistemas de saber modernos, ao se eliminar o analfabetismo também se elimina a oralidade, classificando-a. e a oralidade não é a ausência do saber da escrita, a oralidade é um outro saber, uma outra maneira de olhar o mundo.

Em Terra sonâmbula, após a morte do pai, o filho leva comida todos os dias para o falecido, como oferenda, e a comida desaparece. Há passagem semelhante em A terceira margem do rio.

É muito fácil perceber esses cruzamentos, pois essa prática de levar comida pra quem já não está presente é comum na África e ao redor do mundo. Aqui os mortos estão sempre presente, os mortos não morrem. Aqui se leva comida para o falecido, não é algo que invento. Simplesmente coloco num outro contexto.

Você sente algum preconceito por ser branco num país africano?

Há momentos em que tenho de pagar uma espécie de imposto, uma taxa de raça, mas acho que isso é compreensível num país que teve essa situação de racismo agressiva. Não fico negativamente afetado, pois em geral o que ouço nas ruas é as pessoas dizerem: “Você é nosso”. Além disso, em quase todas as línguas daqui não há uma palavra para dizer branco ou preto, como cor de pele, mas há a palavra “muzungo” que quer dizer que a pessoa é uma estranha, uma estrangeira. O recém-chegado será “muzungo”, mesmo se for negro, contanto que não fizer parte do lugar. Brancos e negros são caracterizados da mesma maneira. Se você demonstrar que fala a língua deles e está por dentro do que acontece ali, já não é mais “muzungo”. A cor da pele não é tão determinante assim para aquilo que se determina como sendo  o outro.

Quando a oralidade entra definitivamente na sua obra?

A diferença está na maneira como sai, não na maneira como entra. Todos nós tivemos vozes, que podem ser do pai, do avô, dos tios, e que nos encarnam. O processo de encantamento é que é a raiz, quando nos deixamos encantar pelas primeiras vezes. No meu caso, tive uma sorte enorme, pois minha mãe é uma grande contadora de histórias. Está viva, tem 90 anos, e até hoje conta historias com uma capacidade de criar brilhos e cores muito acentuada. Meus pais eram imigrantes portugueses, vieram só os dois, sem família, e ela se transmutava na família inteira: era avó, bisavó, tia, tio, sempre por via das historias.

Há alguma identificação de Moçambique com o sertão roseano?

Sim, posso dizer que sim. Mas o curioso é que a própria palavra “sertão” também foi introduzida aqui pelos portugueses. Os livros que descrevem as viagens dos exploradores portugueses, no século 19, falam do sertão, embora a palavra tenha morrido por aqui. Eles queriam designar algo que realmente tinha de fato paralelo em Moçambique, algo paisagístico, geográfico, mas a palavra não viveu. Aqui, o que é equivalente é a savana, esta zona de savana que é muito variada, mais densa menos densa, mas tem um sentido de não lugar – no sentido do infinito, que não tem começo e não tem fim, como disse o próprio Rosa. E tem uma sonoridade muito interessante, algo que eu já tratei em algum lugar, porque sertão tem o verbo “ser”, e o “tão” que é uma medida de infinito, algo que é indizível.

A invenção de palavras é uma forma de criação literária?

Sempre que fiz isso não foi porque tinha a intenção de fazer bonito. Nem estava em busca de algo linguístico, simplesmente. Mas porque há coisas que só podem ser ditas assim. A intenção é revelar, acho que o verbo é esse mesmo, no sentido de encontrar uma linguagem outra, que convide o leitor a esta cumplicidade na construção de uma outra linguagem. Não é intenção estética, não é uma técnica, mas é algo que já havia em mim, como uma urgência. Como é que eu vou dar nomes às coisas e livrar-me dessa carga da língua? Como vou retirar Portugal desse meu português? Venho da poesia, fui antes de tudo um poeta e, portanto, tenho na palavra a base de tudo. Sou artífice da palavra. Para mim, a palavra é tão valida quanto a historia. Busco sempre restituir algo divino à palavra e também usá-la como ferramenta. Escrevo porque tenho o prazer de profanar algo que é cotidiano. Às vezes a palavra até está lá, é preciso destapá-la, tirar o pó, uma poeira que a estava cobrindo e pronto – ela é revelada, redescoberta.

Muitas vezes, como fez Rosa, basta inverter a palavra na frase, não?

Sim, muitas vezes na reconstrução de uma frase feita; outras, no provérbio. Rosa trabalhava naquilo que podemos chamar de improvérbios. Ele os torna improváveis, faz com que constituam um sentido de imprevisibilidade. Isto é uma coisa que faço com os meus filhos, ensiná-los para que eles sejam donos desse prazer, de construir sua própria língua, de surpreender-se. Obviamente que nós usamos essa língua social, que está ali feita, que é patrimônio, mas se você não tem a capacidade de torna-la um brinquedo, de usá-la como uma brincadeira, então perde uma oportunidade de ser feliz dia a dia.

E seus filhos conseguem?

Acho que sim, mas isso depende muito da capacidade de ser feliz num território de noutro. Eu, por exemplo, fu uma criança muito feliz, mas com grandes infelicidade, algumas inventadas, pensava que era mal amado, desprezado, que meus pais não me davam mais atenção, aquelas coisas que os meninos inventam para si. Pensava que era muito feio, e não tinha graça... Bom... eu vivia isso tudo. Era uma criança felicíssima, mas brigava contra essas infelicidades inventadas, o que sempre me levava a procurar outros sentidos, ir pro lado avesso.

Você fala em infelicidades inventadas, mas viveu períodos de guerra. Esse é o motivo de esse tema ser tão presente na sua obra?

Vou te contar um episodio ocorrido quando eu tinha 17 anos e que pode ilustrar essa sua pergunta. Fui militante da Frelimo, na altura na clandestinidade, e havia uma coisa curiosa: para oferecer-se à luta, havia uma comissão, perante a qual você tinha de fazer algo que chamávamos de “narração do sofrimento”. Muito bonito o termo, mas você tinha que provar que merecia confiança e sua candidatura à causa revolucionária era legitima. Essa legitimação era feita pelo sofrimento. Comigo estavam pessoas com 30, 40 anos, pessoas pobres, de outra condição social, todos negros que viviam sob um regime de ditadura, um regime racista. Enquanto esperava minha vez para fazer a narrativa, eu me perguntava. O que sofri? Quais foram meus reais sofrimentos? Tinha de pensar rápido quais seriam esses sofrimentos que não tive nunca, para justificar-me. Pensei que não iam me aceitar e , no final, quando me chamaram, disse mais ou menos assim: “Eu sofri por causa de ver sofrimento dos outros. Não passei fome, nunca tive carência, nunca fui discriminado racialmente. Sou parte de uma elite privilegiada, mas todo o resto que inventei como ilusão de sofrimento foi tão real para mim como o sofrimento desses que passaram aqui”. Ao final, alguém me perguntou: “Você é poeta, não é?” Na altura, eu tinha apenas publicado uns textos que ninguém conhecia, em jornal. “Sou”. E eles me disseram: “Precisamos muito de poesia”. E fui aceito.

 Entrevista feita por João Correia Filho
publicada na revista Metáfora, ano 1- número 1- setembro 2011 

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